Como brasileiro criou ‘abelhas assassinas’ por acidente e revolucionou a apicultura

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Warwick Estevam Kerr com abelhas
Legenda da foto,   Warwick Kerr temia que sua carreira ficasse marcada pelo acidente ocorrido em 1957, que deu origem às abelhas africanizadas

Foi agrônomo, geneticista e entomologista, professor em cinco universidades brasileiras e quatro nos Estados Unidos, além de ter sido o primeiro diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), diretor do Instituto de Pesquisas da Amazônia (Inpa) duas vezes e presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) por dois mandatos.

Como se não bastasse, por onde passou criou departamentos e formou novos pesquisadores, mas quando seu nome é mencionado o que primeiro vem à mente de muita gente é um acidente ocorrido em 1957: a introdução das abelhas africanas – injustamente chamadas de ” abelhas assassinas” – no Brasil.

Não é à toa, portanto, que por muitos anos Warwick Estevam Kerr temeu que sua brilhante carreira fosse prejudicada pelo episódio. Em entrevista à revista EstudosAdvanced, da Universidade de São Paulo (USP), publicada em 2005, ele chegou a dizer:

“Diante do erro cometido com as abelhas africanas, em 1957, não esperava que fosse dar meia-volta. Achei que teria uma vida miserável pelo resto dos meus dias. crianças e disse: ‘esse é o homem que introduziu a abelha silvestre no Brasil’.”

Crédito, legenda da foto da Getty Images,

As abelhas africanizadas foram criadas pelo cruzamento de abelhas africanas e européias.

O tempo, porém, lhe fez justiça. Nascido em Santana de Parnaíba, em 9 de setembro de 1922, Kerr formou-se em Engenharia Agronômica, em 1945, na Escola Agrícola Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba, onde também obteve seu doutorado e professor, e foi professor, de 1951 a 1955, e chefe do Departamento de Genética por quatro meses.

Em 1955, mudou-se para Rio Claro, onde, a partir de 1958, foi chefe do Departamento de Biologia da recém-criada Universidade Estadual Paulista (Unesp). De 1962 a 1964 foi diretor científico da FAPESP, cargo do qual renunciou um mês antes do término de seu mandato para criar e assumir a direção, em 1965, do Departamento de Genética da Faculdade de Medicina da USP, em Ribeirão Preto, de onde se tornou professor titular por concurso em 1971.

Nessa época, foi presidente da SBPC por dois mandatos, 1969-1971 e 1972-1973, período em que teve muitos problemas com a ditadura, que governou o país. Ele foi preso duas vezes, em 1964 e 1969, e teve até sua numerosa família de sete filhos ameaçada e sob vigilância de agentes do governo.

Crédito, Arquivo pessoal / Legenda da foto SBPC,

Warwick morreu aos 96 anos em 15 de setembro de 2018.

Depois de se aposentar da USP, em janeiro de 1981, Kerr foi para o Maranhão, onde ficou oito anos, período em que criou o Departamento de Genética da Universidade Federal de lá (UFMA) e foi reitor da universidade estadual (UEMA).

Então, em 1972, mesmo aposentado aos 70 anos, foi convidado a lecionar, orientar alunos de doutorado e continuar suas pesquisas na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), onde permaneceu até 2012. Nesse período, retornou para Manaus, em 1999, para dirigir novamente o Inpa por mais três anos.

Para o colega agrônomo Breno Magalhães Freitas, do Departamento de Zootecnia da Universidade Federal do Ceará (UFC), a importância de Kerr para a ciência brasileira “foi enorme”.

“Ele foi um cientista pioneiro em muitas áreas e levou a ciência a todas as regiões deste país, tendo formado diretamente várias gerações de pesquisadores brasileiros e inspirado muitas outras”, diz.

“Juntamente com o padre Jesus Moure e o professor Paulo Nogueira-Neto, estabeleceu toda a base de conhecimento sobre as abelhas no Brasil.”

No que diz respeito à apicultura em si, Freitas lembra que Kerr ficou marcado pelo acidente com as abelhas africanas, mas que depois ficou claro que a culpa não era dele.

“E felizmente, mesmo por linhas tortas, a apicultura brasileira acabou se beneficiando enormemente da sua iniciativa de trazer as abelhas africanas, coragem para enfrentar as consequências quando os problemas aconteciam, mesmo não sendo sua responsabilidade”, explica.

“Mas também é preciso ressaltar seu grande trabalho com as abelhas sem ferrão, principalmente no Norte do Brasil.”

As abelhas africanizadas começaram a se espalhar e deram origem ao mito das ‘abelhas assassinas’

O tão falado acidente com as abelhas africanas ocorreu um ano depois de ele voltar da África, para onde fora, em 1956, estudar de perto a produção de mel daquele continente e depois aplicar seus novos conhecimentos à apicultura brasileira.

O objetivo era aumentar a produtividade e a resistência das abelhas européias, que haviam sido introduzidas no Brasil em 1839, mas que não haviam se adaptado muito bem ao país, com exceção das regiões Sul e Sudeste.

Na volta ao Brasil, Kerr trouxe na bagagem 51 rainhas – 50 da África do Sul e uma da Tanzânia – da espécie Apis mellifera scutellata, altamente produtiva, mas muito agressiva – ou defensiva, como preferem os estudiosos das abelhas.

Elas deram origem a colmeias, que ficaram de quarentena em um bosque de eucaliptos no campus de Rio Claro da Unesp, para que fossem escolhidas apenas as mais mansas.

Crédito, legenda da foto da Getty Images,

As abelhas africanizadas são mais defensivas

Para evitar que as rainhas escapassem para a natureza e se espalhassem, as colmeias eram fechadas por uma malha, que permitia a passagem apenas das operárias, que são menores.

Um funcionário da equipe, imaginando que as abelhas ficaram presas por engano, porém, retirou as malhas de algumas colméias.

Resultado: 26 rainhas escaparam, cruzaram com as européias e deram origem a enxames de abelhas africanizadas, que se espalharam, primeiro por São Paulo, depois pelo Brasil e que hoje estão nas três Américas.

Sem predadores naturais na nova casa e muito agressivos, onde chegaram e se instalaram “estavam apavorados”.

“De 1957 a 1964 estas abelhas cruzaram com abelhas alemãs, italianas e portuguesas”, explicou Kerr, na mesma entrevista para Estudos Avançados.

“No entanto, havia um grande problema: os apicultores colocavam seus apiários perto de galinheiros, pocilgas, estábulos. Houve mortes de galinhas, porcos, cavalos, e a mortalidade de pessoas que era de 120 por ano passou para 180.”

A veterinária Débora Cristina Sampaio de Assis, do Departamento de Tecnologia e Inspeção de Produtos de Origem Animal da Escola de Veterinária da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), lembra que as abelhas se espalharam rapidamente pelo país e, por meio do cruzamento com abelhas europeias, deu origem às abelhas africanizadas.

“Inicialmente, eles trouxeram uma série de problemas, pois os apicultores não sabiam como trabalhar com eles, principalmente devido ao seu maior comportamento defensivo, quando comparados aos europeus”, explica.

As abelhas africanizadas foram muito mais sensíveis a qualquer estímulo, além de atacarem em maior número e a distâncias maiores da colméia, sendo muito mais insistentes nos ataques do que as abelhas européias.

“Assim, por medo, muitos apicultores acabaram abandonando a atividade, pois não possuíam equipamentos adequados ou conhecimento técnico para realizar o manejo das abelhas africanizadas”, conta Débora.

Créditos, Vinícius Marinho/Acervo Fiocruz Legenda da foto,

As abelhas africanizadas estão presentes hoje em todo o continente americano

E foi aí que surgiu o mito das “abelhas assassinas”. O medo, gerado pelo desconhecimento e pela repercussão dada pela imprensa aos acidentes ocorridos nesse período, fez com que as pessoas acreditassem que se tratavam de abelhas que poderiam atacar qualquer um e sem motivo, quando na verdade o que havia acontecido era um resposta defensiva, para proteger a colônia.

“Ao se sentirem ameaçadas, as abelhas abandonavam as colméias em grande número, picando pessoas e animais, mesmo a longas distâncias, a 100 metros ou mais da colmeia”, conta Débora.

Os animais, quando confinados, levavam centenas ou milhares de picadas e muitos acabavam morrendo.

Além disso, como as abelhas africanizadas produzem mais enxames por estação quando comparadas às abelhas européias, esse fenômeno se tornou muito mais frequente, assustando a população.

“No entanto, apesar de parecer um evento impressionante para a maioria das pessoas, devido ao barulho e ao grande número de abelhas, sabe-se que durante a enxameação as abelhas têm pouca tendência a picar”, diz Débora.

As vantagens

Mas não foi só morte e pânico que as abelhas africanizadas causaram.

“Pensando na apicultura brasileira, no curto prazo houve um impacto negativo, com a maioria dos apicultores desistindo da atividade”, diz Freitas.

“Mas a médio e longo prazo, assim que se percebeu que esta abelha era diferente e não podia ser criada como a europeia, quando se estudou o seu comportamento e se desenvolveram roupas de protecção, fumigadores maiores, e passou-se a criá-la longe de pessoas e animais e, principalmente, a adoção de técnicas de manejo específicas para esse animal, a apicultura brasileira deu grandes saltos.”

Por isso, segundo ele, hoje o Brasil é um grande produtor e exportador de mel e própolis, algo impensável na época.

“E isso ocorre apesar de nossos apicultores não estarem devidamente qualificados, ainda com dificuldades de acesso a informações, equipamentos, crédito e comercialização justa de seus produtos”, acrescenta Freitas.

O próprio Kerr contou, em entrevista ao Estudos Avançados, como se deu esse processo.

“O grupo de Ribeirão Preto (eu, Lionel Gonçalves, Antônio Carlos Stort, vários alunos, três técnicos e depois David De Jong e Ademilson Espencer Soares) conseguiu desenvolver várias técnicas, algumas bem simples, para controlar a exploração econômica dessas abelhas” , disse.

“Como colocar os apiários longe das casas, galinheiros e estábulos; depositar as colmeias em bancadas isoladas (ou em grossos canos de esgoto), usar fumigadores maiores, macacões, botas, máscaras e luvas, sempre; fazer rainhas, escolher o mais colmeias produtivas, mansas, mais resistentes a ácaros e doenças. Porém, um avanço fundamental foi feito em 1965 e 1966 com a redução da agressividade das abelhas, que era um grande problema.”

Cinco anos depois, o problema estava praticamente resolvido. Para isso, o grupo comprou vinte rainhas italianas mansas e de alto rendimento dos Estados Unidos, enxertou e obteve 25.000 rainhas virgens, que foram introduzidas em 25.000 núcleos fortes, dos quais 18.000 foram aceitos e produziram milhares de zangões italianos.

O Brasil é atualmente um grande produtor e exportador de mel e própolis.

“Logo os apicultores viram que não adiantava ter uma população domesticada, como era o caso das abelhas italianas, mas que proporcionava uma produção de mel reduzida, duas a três vezes menor que a africanizada”, declarou Kerr.

Segundo ele, na entrevista, a baixa produção dos europeus foi causada por vários fatores, inclusive por não resistirem a um ácaro muito grande, o Varroa destructor, que causava enormes prejuízos nas colmeias, a ponto de baixar a produtividade de apicultura por dezenas de países.

Além disso, os africanizados jogam fora larvas doentes e mortas. As colmeias são mais limpas que as europeias.

“Nossa produção se normalizou porque os apicultores aprenderam a lidar com a abelha africanizada”, comemorou.

Há controvérsias sobre se o acidente poderia ou não ter sido evitado, mas é consenso que não houve negligência. Para Freitas, a fuga das rainhas africanas poderia ter sido evitada, mas não faltou rigor na experiência.

“A ideia original não era que as abelhas saíssem soltas na mata, tanto que se tomou um cuidado preventivo com a colocação de telas protetoras nas colmeias”, conta.

“Porém, não acredito em descaso. Só não imaginavam que alguém tiraria aquelas telas, com a intenção de ajudar, pensando que as abelhas ficaram presas por engano. É preciso lembrar que aqueles eram outros tempos, e a maioria dos empregados das fazendas eram pessoas simples, sem maiores instruções.”

Débora, por sua vez, lembra que fazer experimentos de campo não é uma tarefa simples. Existem dificuldades para controlar todos os fatores que podem interferir nos resultados.

“Portanto, não se pode dizer que houve negligência ou falta de rigor no experimento”, diz ela.

“O fato é que as abelhas africanizadas se adaptaram com muito mais facilidade ao ambiente do que as europeias e, o que era para ser feito de forma controlada, acabou sendo feito pela própria natureza.”

O próprio Kerr, que faleceu aos 96 anos, em 15 de setembro de 2018, em sua entrevista, conta que a partir de 1979 tudo mudou.

“Eles começaram a tirar fotos de mim e falaram: ‘esse é o homem que salvou nossa apicultura’”, contou.

“Por causa dele, papai comprou um caminhão novo”. Enfim, durante 14 anos vivi uma tragédia com a introdução no Brasil de 50 rainhas da África do Sul e uma da Tanzânia. Agora, minha esposa acha a história até engraçada e eu, como bom caipira de Santana de Parnaíba, digo ‘Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo’.

Fonte: Evanildo da Silveira – De Vera Cruz (RS) para a BBC News Brasil

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